Por Catarina Brandão, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Email: [email protected]
Introdução
Este texto surge na sequência do workshop “A Técnica dos Incidentes Críticos – da investigação à intervenção”, dinamizado no âmbito do CIAIQ2017, em Salamanca, Espanha. Procura-se definir a Técnica dos Incidentes Críticos enquanto técnica de recolha de informação e apresentar as fases da sua aplicação, recorrendo a exemplos práticos de investigação que temos vindo a desenvolver.
Definição e contextualização da técnica
A Técnica dos Incidentes Críticos é uma técnica de recolha de informação que encontra as suas origens na abordagem qualitativa. Permite realizar estudos numa lógica reflexiva, acedendo a informação subjectiva, focando a forma como situações e acontecimentos são vividos e experienciados pelos indivíduos. O seu uso permite ainda aceder a descrições narrativas de situações onde são identificados problemas de adaptação organizacional sistémica e institucional ou problemas que têm origem nas diferenças entre entidades que interagem entre si (Hettlage & Steinlin, 2006).
Quando o investigador recorre à Técnica dos Incidentes Críticos consegue focar padrões de comportamento, recursos, skills, conhecimentos, emoções e representações do indivíduo sobre a sua própria acção e acerca da acção de outros. Isso permite aceder a três componentes da experiência do sujeito (Hettlage & Steinlin, 2006): (a) afectiva, ou seja, as emoções que o indivíduo experiencia na situação; (b) comportamental, ou seja, os comportamentos adoptados pelos indivíduos; e (c) cognitiva, ou seja, a aquisição ou o uso de conhecimento ou de informação (e.g., representações).
O que é um incidente crítico?
O incidente crítico define-se enquanto uma situação ou evento que se destaca pelas suas características, que o tornam crítico, distinto e relevante para a compreensão de um dado fenómeno ou processo. O investigador que se propõe a utilizar esta técnica deverá definir, a priori, qual a situação a observar, delimitando-a. Isso implica definir o significado de “incidente crítico” no seu estudo, explicitando aquilo que torna crítica a situação. Para concretizar esta ideia considere-se o estudo desenvolvido por Ramos e Brandão (2016). As autoras realizaram um estudo exploratório e descritivo, em que focavam o processo inovador em jovens líderes empreendedores. Definiram o incidente crítico no seu estudo da seguinte forma: «um momento em que o líder considera que foi criativo e inovador no seu trabalho», analisando e validando os dados recolhidos à luz desta definição.
Fases de utilização
A aplicação da Técnica dos Incidentes Críticos (TIC) implica um conjunto de passos, de forma a que os dados sejam recolhidos num formato que permita dar resposta aos objectivos da investigação. Esses passos podem ser sistematizados nas seguintes fases: (1) preparação; (2) recolha dos dados; e (3) análise dos dados.
A fase de preparação
A primeira fase implica dar resposta a um conjunto de questões que vão delimitar o objecto de estudo.
- Qual a situação a observar? – Delimita o que se pretende observar ou focar no estudo.
- O que é um “incidente crítico”? – Define o que se entende por incidente crítico naquele estudo em particular.
- Qual a temporalidade dos incidentes críticos? – Define se os incidentes críticos a recolher são relativos a um espaço temporal particular, ou se é dada liberdade ao participante a este nível. Por exemplo, pode-se solicitar ao participante que descreva incidentes que tenha vivido nos seis meses anteriores ao momento da recolha dos dados.
- Quantos incidentes recolher? – Define quantos incidentes críticos o investigador vai recolher junto de cada participante.
As respostas a estas questões guiam o processo de recolha de dados e contribuem para a qualidade das inferências de um estudo que faça uso da Técnica dos Incidentes Críticos (TIC).[1] Considere-se a forma como estes elementos foram definidos em Brandão (2010):
Estes elementos deverão ser sistematizados num instrumento de recolha de informação. Considerando que a nossa opção tem sido a recolha em contexto de entrevista, de forma a potenciar a profundidade dos dados recolhidos, que também resulta da qualidade da relação que se estabelece entre entrevistador e entrevistado, poder-se-á definir um guião que, no que se refere especificamente aos incidentes críticos, poderá ter a estrutura base sistematizada no Quadro 2.
A fase da recolha dos dados
Conforme referido, os incidentes podem ser recolhidos de diferentes formas. É possível recorrer a observadores treinados, o que geralmente está associado a custos elevados em termos de tempo e dinheiro. Importa ainda equacionar a possível dificuldade de aceitação dos participantes em serem observados.
Pode-se igualmente recolher os dados no formato de auto-relato, recorrendo a entrevistas, focus groups ou questionários. Considere-se em particular a recolha em contexto de entrevista. A evocação de incidentes críticos requer que se apresente a TIC ao participante, informando-o acerca do tipo de informação que o investigador pretende focar. Isso poderá passar pela apresentação de um exemplo de incidente crítico, associado ao processo estudado ou ao contexto do participante, o que pode facilitar a evocação do incidente crítico se o participante se revir na situação descrita. Por outro lado, ao se informar os participantes acerca dos elementos da sua experiência que se pretende explorar isso poderá permitir-lhe organizar a sua experiência e depois partilhá-la.
Note-se que importa equacionar se a expressão “incidente crítico” é profícua para a expressão do participante, na medida em que “incidente” pode assumir a conotação de algo que não deveria ter acontecido ou que foi errado. Brandão (2010) quando estudou os gestores de topo da Administração Pública Portuguesa optou por falar em “episódios” e “situações”, em detrimento de incidente, considerando o significado que “crítico” poderia assumir junto de uma população que a literatura demonstra ter tendência para adoptar um discurso auto-protector.
Recuperando o trabalho de Ramos e Brandão (2016) o Quadro 3 sistematiza a forma como as autoras apresentaram aos participantes o estímulo para identificar incidentes críticos que permitiram conhecer o processo de inovação de jovens líderes empreendedores.
A definição destes elementos e a sua apresentação permite que o participante se contextualize no tempo e no espaço, recuperando vários elementos da sua experiência. Trata-se, assim, de uma técnica altamente contextualizada. Note-se, contudo, que é promovida a exploração livre dos incidentes críticos pelo participante. Cabe ao entrevistador informá-lo dos elementos da experiência que são relevantes para a compreensão do fenómeno em estudo, mas sempre evitando que a entrevista se torne rígida. Os elementos do incidente crítico funcionam como guias. O entrevistador deve observar se esses elementos estão presentes na narrativa do participante, estimulando-o a falar sobre os elementos que não sejam abordados.
A fase da análise dos dados
A análise dos incidentes críticos pode ser realizada segundo diferentes técnicas. A que temos privilegiado é a análise de conteúdo, seguindo princípios definidos por Bardin (2009) e codificando os dados em categorias significativas. Temos adoptado, conforme o estado da arte e o fenómeno em estudo, uma lógica dedutiva, definindo categorias à luz do quadro de referência subjacente ao estudo (Flanagan, 1954; Testa & Ehrart, 2005). Outras vezes adoptamos uma lógica indutiva ou grounded, em que o investigador procura “despojar-se” de noções pré-estabelecidas e as categorias emergem dos dados recolhidos (Chell, 2004).
Vantagens no uso da Técnica dos Incidentes Críticos?
Assumindo à partida que a própria definição da técnica informa o investigador sobre o seu potencial, há ainda a considerar outros elementos que demonstram o potencial da Técnica dos Incidentes Críticos para aceder à experiência humana. A primeira prende-se exactamente com o permitir estudar processos, naquilo que se pode denominar de abordagem temporal, baseada em Chell (2004), em que se situa o participante no tempo e se procura que ele vá descrevendo o incidente seguindo uma lógica temporal e organizando diversos incidentes numa linha temporal, percebendo-se a sequência da sua experiência.
Uma outra vantagem desta técnica prende-se com a capacidade de minimizar a influência de reacções e opiniões estereotípicas. À medida que o autor do incidente (ou seja, a fonte da informação) se vai situando no tempo e no espaço e, assim, envolvendo na situação que é descrita por si, minimiza-se a possibilidade do efeito da desejabilidade social se manifestar no seu discurso (Hettlage & Steinlin, 2006).
Esta técnica permite ainda identificar o contexto de situações com elevada carga emocional (Chell, 2004) e possui um elevado potencial reflexivo. Ou seja, ao mesmo tempo que o indivíduo evoca um incidente crítico que permita, por exemplo, caracterizar um dado contexto ou processo (imagine-se, a título ilustrativo, a exploração do processo de interacção médico – paciente), cria um espaço para o participante reflectir e compreender melhor o seu próprio contexto e os comportamentos críticos para a sua situação.
Considerações finais
Neste texto abordamos a utilização da Técnica dos Incidentes Críticos em contexto de investigação. Contudo, o seu potencial a nível da intervenção merece igual destaque e é percebido no próprio momento da recolha de informação, quando permite ao participante reflectir sobre a sua acção. Como refere Hay, citando Mischenko (2005) «sharing opens up possibilities for alternative ways of being» (Hay, 2014, p.521). A nível de intervenção, pode ainda ser utilizada enquanto ferramenta de diagnóstico, permitindo a identificação de formas de acção, pensamento e reacções alternativas a situações que caracterizam a experiência do sujeito em diferentes contextos de vida. É, por isso, uma técnica que permite não só estudar a experiência humana como também capacitar o participante a agir.
[1] A este respeito sugere-se a consulta de Brandão (2010) e Butterfield, Borgen, Amundson, & Maglio (2005).
Referências
Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70: Persona.
Brandão, C. (2010). O Desempenho Individual de dirigentes de topo da Administração Pública Portuguesa: um contributo para o desenvolvimento de uma taxionomia comportamental e motivacional. (Doutoramento), Universidade do Porto, Porto.
Butterfield, L. D., Borgen, W. A., Amundson, N. E., & Maglio, A.-S. T. (2005). Fifty years of the critical incident technique: 1954-2004. Qualitative research, 5(4), 475-497.
Chell, E. (2004). Critical incident technique. In C. Cassel & G. Symon (Eds.), Essential guide to qualitative methods in organizational research. London: Sage Publications Ltd.
Flanagan, J. C. (1954). The critical incident technique. Psychological bulletin, 51(4), 327-358.
Hay, A. (2014). ‘I don’t know what I am doing!’: Surfacing struggles of managerial identity work. Management Learning, 45(5), 509-524. doi:10.1177/1350507613483421
Hettlage, R., & Steinlin, M. (2006). The critical incident technique in knowledge management-related contexts. Ingenious Peoples Knowledge.
Ramos, E., & Brandão, C. (2016). Leader’s creativity and innovation: state of the art. Paper presented at the International psychological applications conference and trends: proceedings, Lisboa, Portugal.
Testa, M. R., & Ehrart, M. G. (2005). Service leader interaction behaviors. Comparing employee and manager perspectives. Group & organization management, 30(5), 456-486.
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