Análise de Dados Visuais através do webQDA

Análise de Dados Visuais através do webQDA

Ana Isabel Rodrigues, Instituto Politécnico de Beja e António Pedro Costa, Universidade de Aveiro.

Vivemos em plena época de “construção visual do campo social” (Mitchell 2008), o que alguns autores designam de “visual movement” (Heisley, 2001) ou de “pictorial turn” (Mitchell, 1994) ou até mesmo de uma “image science” (Mitchell, 2015). Na sociedade contemporânea as imagens são omnipresentes, e exatamente partindo desta premissa, toda a representação visual deve potencialmente ser considerada em todos os estudos científicos sobre a sociedade (Banks, 2018). Por essa razão, as imagens (estáticas ou dinâmicas) assumem nos dias de hoje, um papel cada vez mais relevante, enriquecedor e desafiante em investigação qualitativa, transformando-se em dados visuais passíveis de serem analisados. As imagens soltam palavras, acrescentam novas pespectivas, ajudam os participantes a expressarem entendimentos complexos em relação às suas experiências e validar dados textuais, por exemplo (Harper, 2002). Dada a importância do dado visual em investigação qualitativa, emerge um campo de conhecimento e aplicação consolidado, o que Rose (2016) define como “Métodos de Investigação Visual” (“Visual Research Methods” no original). As imagens transformam-se desta forma em dados visuais para análise. Segundo  Rodrigues, Souza & Costa (2017) assumem mesmo um duplo papel em investigação qualitativa:

(a) Como método, com utilização de técnicas de recolha de informação baseadas no elemento pictorial (fotografia, vídeo, entre outros). A imagem serve de estímulo para extrair informação e dados relevantes do participante (como por exemplo, Foto-Elicitação, Photovoice, Video-Elicitação). Ou seja, a adoção de técnicas diretas de recolha de materiais empíricos, como a entrevista, observação, grupos de discussão, com base no dado visual, permitindo ‘visualizar’ as dimensões intangíveis da atividade humana (Whincup, 2004);

(b) Como corpus do material empírico, ou seja, o entendimento dos dados visuais como elementos que espelham um determinado fenómeno que necessita de ser estudado e que constituem fontes de informação para utilização de métodos de análise como a análise de conteúdo, por exemplo. Neste caso, os dados visuais constituem-se como corpus e unidade de análise, por vezes entendidos numa ótica de complementaridade de dados textuais.

Em suma, a utilização do dado visual pode incluir a fotografia ou vídeo, entre outros, e pode ser incorporado em projetos de investigação qualitativa de diversas formas (Pink, 2004): análise de dados visuais (fotos, vídeos, cartazes, etc), adoção de fotografias e vídeos para desencadear discussões e conduzir entrevistas sobre certos assuntos, produção de fotografias ou vídeos como elementos de estudo pelo próprio investigador ou participante.

Neste contexto, a análise deste tipo de dados com recurso a um software específico, permite aprofundar a análise, facilita a triangulação de dados, a realização de inferências aos dados codificados, entre outros.

A análise de dados visuais implicar descrever, transcrever e interpretar imagens/fotos e vídeos, por exemplo, imagens disponíveis na Internet, vídeos disponibilizados no Youtube. De referir que neste texto pretende-se explicar alguns procedimentos da análise deste tipo de dados, não dando foco/relevância ao regulamento geral de proteção de dados, especificamente, a dimensão ética.

No exemplo, fictício, serão usados dados visuais como meio de compreensão da experiência humana. Neste caso pretende-se contribuir para alcançar uma reflexão crítica e construtiva sobre todos os assuntos que proporcionam cidadania global e local, ajudando especialmente na solução de problemas essenciais para a sociedade: ameaças ao meio ambiente, produção de energia e alimentos, saúde e bem-estar e sustentabilidade de vida na Terra. Além disso, com o uso de dados visuais espera-se estimular os utilizadores para a realização de estudos de maneira mais criativa e participativa, contribuindo para uma cidadania mais ativa e comprometida com a sustentabilidade do nosso planeta.

Os dados visuais podem ser importados para o webQDA para as Fontes Internas (ver figura 1). Caso o tamanho ultrapasse o definido nos requisitos (consultar a página de requisitos em www.webqda.net) o utilizador poderá disponibilizar os seus dados nas Fontes Externas.

O utilizador deve descrever as imagens através de rótulos que desenha (ver Figura 1). Os rótulos aqui designados são quadrados ou retângulos coloridos. As cores são meramente visuais não tendo um outro significado a não ser o que utilizador assim o queira (por exemplo, cor vermelha para ações negativas e a cor verde para ações positivas).

Rótulo descritivo e interpretativo de uma imagem webQDA

Figura 1 – Rótulo descritivo e interpretativo de uma imagem (Fonte: https://unsplash.com/)

Quando o utilizador desenha um rótulo surge uma caixa para que possa descrever. Usualmente, o utilizador descreve factualmente e realiza as primeiras interpretações/inferências nesta descrição. No caso da figura “Homem pobre a trabalhar na rua”, é factual que está a trabalhar na rua e a parte interpretativa deriva da forma como ele se apresenta e do tipo de trabalho que está a desempenhar. Neste contexto, dependendo do tipo de estudo, a foto recolhida poderia estar inserida num estudo Etnográfico em que o investigador vivenciou e capturou este momento. No caso das imagens em movimento, vídeos, além da descrição factual, interpretativa/inferencial o utilizador pode transcrever, por exemplo, falas de um entrevistado. O utilizador marca o início de um segmento e quando clica para fechar surge a caixa para que possa escrever. A qualquer momento, o utilizador pode pré-visualizar apenas os segmentos que contêm descrições. O investigador pode editar e redefinir as descrições ou transcrições realizadas. Numa foto pode redimensionar ou mover o rótulo e, no vídeo, pode redefinir o intervalo de tempo (aumentando ou diminuindo) de acordo com novas percepções aquando da (re)leitura. O investigador tem sempre a possibilidade exportar os textos associados a cada foto ou vídeo. Por exemplo, no caso da foto pode exportar a mesma com os rótulos marcados de forma a ser de fácil inserção, por exemplo, num artigo.

O investigador pode segmentar diversas fotos e codificar as suas descrições em Códigos Livres ou Códigos Árvore (Códigos Interpretativos). Também é possível caracterizar as fotos com atributos que permitam posteriormente cruzar com os Códigos Interpretativos (ver figura 2).

Caracterização das fotos através da funcionalidade Classificações webQDA

Figura 2 – Caracterização das fotos através da funcionalidade Classificações

O investigador pode a qualquer momento aferir o número de referências (indicadores) e códigos que determinada foto contém, bem como se foi associada alguma nota ou classificação à mesma (ver as colunas da figura 3).

O processo é muito idêntico para o vídeo (ver figura 3). Talvez o ponto de diferenciação seja a possibilidade de  realizar a transcrição literal de uma fala, como evidência de uma afirmação/interpretação realizada pelo investigador.

Exemplo de descrição e transcrição de vídeo e respectivas codificações webQDA

Figura 3 – Exemplo de descrição e transcrição de vídeo e respectivas codificações

É necessário que o investigador trabalhe na indexação de descrições, interpretações ou uma conjugação de ambos, em textos factuais ou inferenciais, para que seja possível codificar os conteúdos desejados.

No webQDA, os vídeos podem ser disponibilizados nas fontes internas e fontes externas. Quando importamos um vídeo (até 20mb) é possível capturar frames, como se tratasse de um printscreen (ver figura 4). As imagens podem ser removidas antes de serem gravadas nas fontes internas. Nas fontes internas, as imagens ficam dentro de uma pasta com o mesmo nome do vídeo.

Captura de imagens através de um vídeo disponível nas Fontes Internas webQDA

Figura 4 – Captura de imagens através de um vídeo disponível nas Fontes Internas

Nota: O que acabámos de descrever apenas pode ser usado nos vídeos importados para as fontes internas.

No questionamento, é possível cruzar os dados visuais com outro tipo de dados. Como já referia Denzin nos anos 80 (1989), a triangulação de dados consiste na recolha de dados através de diferentes fontes. Denzin (1970) distingue subtipos de triangulação e propõe que se estude o fenómeno em tempos (datas – explorando as diferenças temporais) e espaços (locais – tomando a forma de investigação comparativa) distintos e com indivíduos diferentes.

No caso do nosso projeto fictício, poder-se-ia, numa primeira fase, identificar as palavras mais frequentes nas descrições realizadas aos dados visuais (ver figura 5). As palavras mais frequentes podem ser convertidas em códigos livres ou códigos árvore.

Nuvem de palavras gerada pela funcionalidade “Palavras mais Frequentes” webQDA

Figura 5 – Nuvem de palavras gerada pela funcionalidade “Palavras mais Frequentes”

Gráficos de Barras e Circular gerado através de uma Pesquisa de Texto webQDA

Figura 6 – Gráficos de Barras e Circular gerado através de uma Pesquisa de Texto

Visualização de uma célula de uma matriz webQDA

Figura 7 – Visualização de uma célula de uma matriz através do Mapa Conceptual

Os dados visuais são assumidos hoje como método e corpus de análise com relevância na pesquisa. O uso de dados visuais pode revelar novos insights de dimensões intangíveis da atividade humana, geralmente não acessíveis através do uso de outros tipos de dados. Os instrumentos de coleta de dados, quando adequadamente construídos e aplicados, podem transformar dados em informações úteis que apoiam a tomada de decisão.

Considerações Finais

Como sabemos, no que diz respeito à análise de dados qualitativos os atuais CAQDAS (Computer-Assisted Qualitative Data Analysis Software) permitem analisar diferentes tipos de dados (texto, imagem, áudio e vídeo), explorar diversos métodos e técnicas de análise, codificar e categorizar, interpretar e extrair resultados. Cabe ao investigador decidir como e quais os dados a codificar e garantir que o uso do software se adapta ao quadro teórico, ao contexto e às questões de investigação. Existem no mercado várias soluções que analisam dados visuais, permitindo trabalhar com várias fontes de dados visuais como imagens estáticas (fotografias, desenhos, pinturas) e imagem dinâmica (o caso de vídeos), desde que em formato digital (Rodrigues, Garcia & Costa, 2020). De uma maneira geral, os vários CAQDAS, ao nível de dados visuais, permitem operações essenciais, como: (i) organização de corpus de dados (organização inicial de dados visuais): como referem Amado, Costa e Crusoé (2017), “a construção e análise de um corpus de dados constituem algo de complexo e dinâmico, sendo necessária uma ferramenta que flexibilize este processo” (p. 310). Neste caso, o software ajuda na organização de todas as imagens com sistemas de classificação e descrição desses dados visuais; (ii) categorização e codificação: o Sistema de Codificação é o “cérebro” de um projeto de investigação (Costa e Amado, 2018) e é o próprio utilizador que escolhe, cria e interpreta as imagens do seu corpus de dados visuais, podendo fazer anotações e comentários a essas imagens, criando unidades de registo ou análise.

Nota: Este texto complementa o publicado no blog do webQDA, disponível em https://www.webqda.net/analise-de-dados-visuais-novos-contextos-interpretativos-a-investigacao-qualitativa/

Referências Bibliográficas

Amado, J., Costa, A. P., & Crusoé, N. (2017). A Técnica de Análise de Conteúdo. In J. Amado (Ed.), Manual de Investigação Qualitativa em Educação (3a ed, pp. 301–350). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

Banks, M. (2018). Using Visual Data Qualitative Research. 2nd ed. London: Sage.

Costa, A. P., & Amado, J. (2018). Análise de Conteúdo suportada por software (1a). Oliveira de Azeméis – Aveiro – PORTUGAL: Ludomedia.

Denzin, N. K. (1970). The research act: A theoretical introduction to sociological methods. Chicago: Aldine Pub. Co.

Denzin, N. K. (1989). The Research Act. Englewood Cliffs N. J.: Prentice Hall.

Harper, D. (2002). Talking about pictures: a case for photo elicitation. Visual Studies, 17, 13-26.

Deborah D. Heisley (2001). Visual Research: Current Bias and Future Direction, in NA – Advances in Consumer Research Volume 28, eds. Mary C. Gilly and Joan Meyers-Levy, Valdosta, GA: Association for Consumer Research, pp. 45-46

Mitchell, C. (2008). Getting the picture and changing the picture: Visual methodologies and educational research in South Africa. South African Journal of Education, 28, 365-383.

Mitchell, W. J. T. (2015). Image Science, University of Chicago Press: Chicago.

Mitchell, W. J. T. (1994). Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation, University of Chicago Press: Chicago.

Pink, S. (2004). Visual methods. In C. Seale, G. Gobo, J. F. Gubrium, & D. Silverman (Eds.), Qualitative Research Practice (pp. 391-406). London: Sage.

Rose, G. (2016). Visual methodologies: An introduction to researching with visual materials. London: Sage Publications Ltd.

Rodrigues, A., Souza, F. N., & Costa, A. P. (eds) (2017). Análise de dados visuais: desafios e oportunidades à investigação qualitativa (Editorial). Revista de Pesquisa Qualitativa, 5 (8), Brasil. Available at http://rpq.revista.sepq.org.br/index.php/rpq/issue/view/8/showToc

Rodrigues, A., Alzás Garcia, T., & Costa, A. P. (2020). Análise de Dados Visuais e Redes Sociais com Apoio de Software. In Gonçalves, S. P., Gonçalves, J.F., & Marques, C.G. (coords) (in press). Manual de investigação qualitativa: Conceção, análise e aplicações. Lisboa: Editora Lidel, Pactor. (no prelo, 2020)

Whincup, T. (2004). Imagining the Intangible. In Caroline Knowles and Paul Sweetman (Eds). Picturing the Social Landscape: Visual Methods and the Sociological Imagination. (pp.79-92). London: Routledge.

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