Por Severino Ramos Lima de Souza, Faculdade Frassinetti do Recife, Brasil ([email protected]) e Ana Lúcia Francisco, Universidade Católica de Pernambuco, Brasil ([email protected]).
Introdução
Este texto é um recorte do artigo “Aproximações entre fenomenologia e o método da cartografia em pesquisa qualitativa”, publicado nos Anais do CIAIQ2017. Objetiva-se apresentar algumas das pistas que norteiam a prática do método da cartografia.
O Método da Cartografia
A cartografia como método de pesquisa, no âmbito das ciências sócio-humanas, foi sugerida por Félix Guattari e Giles Deleuze, dentro dos estudos relativos ao acompanhamento de processos e produção de subjetividades. No livro Mil platôs (2011) os referidos autores inserem a cartografia nos princípios do conceito de rizoma para se referir ao modo como concebem produção de subjetividades. Compreendido como mapa, o rizoma “é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 30). Os princípios rizomáticos, tal como os autores descrevem, apoiam-se em um tipo de racionalidade para além das articulações binárias de causa e efeito, contrapondo-se aos modelos demonstrativos-representacionais, derivados de uma racionalidade cartesiana-positivista-calculante. O desafio que nos lança o método da cartografia, em linhas gerais, é o de exercitar a sustentação da abertura de pensamento para receber, sem pré-conceitos, tudo o que for se apresentando no processo de pesquisar como condição de possibilidade para se produzir conhecimento pertinente e consistente. Embora não se defina por um conjunto de procedimentos a priori, não significa que a cartografia aconteça na ausência total de orientações, as quais são designadas como pistas.
Acompanhar processos (Barros & Kastrup, 2012) é ao que se destina o método da cartografia. São os processos e a dimensão interventiva a orientar sua prática e não metas e objetivos previamente definidos. Não se trata, contudo, de negligenciá-los ou eliminá-los porque nehuma pesquisa que almeje certo rigor acontece sem o mínimo de parâmetros e de propósitos. Porém, as metas e os objetivos são móveis e flexíveis por encontrarem-se subordinados aos caminhos que vão sendo desdobrados no próprio processo do pesquisar, que acontece como intervenção. Por esta razão, a proposta cartográfica sugere uma reversão da concepção tradicional de método (metá-hódos) para hódos-metá porque a primazia recai sobre a experiência do caminhar da pesquisa.
Caracterizando-se como uma prática de pesquisa que tem por objetivo o acompanhamento de processos, a cartografia, inevitavelmente, traz um forte viés interventivo e, por esta razão, assume o caráter de pesquisa-intervenção (Passos & Benevides de Barros, 2012). Pesquisar é intervir na realidade e não apenas representá-la. Contudo, a intervenção que a pesquisa opera não é unilateral, ou seja, ela não se dá em um sentido único. Todos os que estão envolvidos na pesquisa estão implicados em todo o processo. Portanto, pesquisador-pesquisados-campo sofrem os efeitos do ato de pesquisar.
Por ser interventiva, a perspectiva da cartografia supõe, inevitavelmente, o mergulho do pesquisador no campo onde acontecerá sua investigação. Este mergulho implica o cartógrafo nos movimentos das forças, das intensidades e dos afetos circulantes, de modo a compor, com sua presença e ações, o coletivo de forças como plano da experiência cartográfica (Escóssia & Tedesco, 2012) que, em seus movimentos vai desenhando e fazendo emergir paisagens e mapas (formas e realidades), também em movimento. Nessa medida, a pesquisa cartográfica acontece mediante o envolvimento implicado e reflexivo do pesquisador com tudo e com todos que participam da composição do campo. Presume-se, portanto, que não há qualquer pretensão à neutralidade. Pesquisador, objeto e pesquisados, encontram-se em um mesmo plano comum no qual estão implicados, inseparavelmente. (Passos & Benevides de Barros, 2012).
A dimensão do comum (Kastrup & Passos, 2014) à qual se refere a cartografia não é a mesma coisa de homogeneidade. Diz respeito à dimensão processual da realidade na qual estão todos implicados, participando, com sua singularidade, da tecitura de um mundo comum, o qual se apresenta heterogêneo, diverso, múltiplo, fazendo emergir o entendimento de uma realidade complexa, em constante movimento. O sentido de comum, na perspectiva da cartografia, refere-se à experiência de pertencimento por habitar um mesmo território de práticas com-partilhadas em meio a um coletivo de forças evidenciado pelas tramas que as sustém.
Trazer para a pesquisa, como “material” significativo, a experiência do pesquisador no ato de pesquisar, aponta para uma “nova ordem” na produção de conhecimento cientificamente válido. O que é vivido pelo pesquisador, enquanto ele pesquisa, mobiliza e viabiliza o acesso à transversalidade e ao plano comum. Busca-se, portanto, resgatar a dimensão do sensível como abertura e orientação no processo de pesquisa, mediante o cultivo do olhar e da atenção aos movimentos em curso e aos efeitos destes sobre o pesquisador, pesquisados e o campo. Assim, considera-se o funcionamento da atenção do pesquisador aspecto fundamental no trabalho de pesquisa cartográfica (Kastrup, 2012). A apredizagem para uma atitude cartográfica em pesquisa passa, fundamentalmente, pelo cultivo do olhar e da atenção aos processos em curso. Refere-se, portanto, a uma atenção e de um olhar concentrados mas, ao mesmo tempo, flutuantes e abertos, em um movimento nômade, que só se detém o tempo suficiente e necessário ao que emerge para, logo em seguida, colocar-se novamente em curso pelo chamamento dos acontecimentos em movimento (Kastrup, 2012).
Considerações finais
A partir dessas reflexões podemos inferir que o método da cartografia concebe a prática da pesquisa como ação corporificada no pesquisador-em-sintonia-com-o-contexto-de-estudo a produzir saber pelo fazer. Produzir conhecimento é posicionar-se e tomar posição no mundo. Nenhuma ciência é neutra porque ela nasce como necessidade de resposta às inquietações humanas em meio ao mundo humano, situado, datado e encarnado em cada sujeito em sua multiplicidade expressiva.
Referências
Barros, L. P., & Kastrup, V. (2012). Cartografar é acompanhar processos. In Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2011). Mil platôs. Vol. 1. 34ª ed. Rio de Janeiro: Letras.
Escóssia, L., & Tedesco, S. (2012). O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.
Kastrup, V. (2012). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.
Kastrup, V., & Passos, E. (2014). Cartografar é traçar um plano comum. In Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. Pistas do método da cartografia: experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina.
Passos, E., & Benevides de Barros (2012). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.
DEIXE UM COMENTÁRIO